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Texto de Fernando Andrette sobre o novo disco do AMTrio!

Texto de Fernando Andrette para a revista Clube do Áudio e Vídeo sobre o disco Na Esquina do Clube com o Sol na Cabeça.




Agosto de 2019

UMA OBRA PRIMA!

Uma fina garoa descia sobre o Vale do Anhangabaú, fazendo- -nos apressar os passos rumo ao Theatro Municipal. O aglomerado de pessoas na escadaria nos dava toda a certeza de casa lotada, e uma noite inesquecível. As pessoas estampavam em seus ros- tos uma alegria contagiante, de confraternização, por ali estarem e assistirem ao show de lançamento da turnê do disco Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento, acompanhado do Som Imaginário e orquestra. Sabíamos que seria uma noite de gala!

Estamos falando de 1974, e eu tinha apenas 16 anos e estava, pela primeira, vez indo assistir a um show de música instrumental brasileira. Sim, meu amigo, estamos falando do auge da censura no Brasil, em que 8 das 11 faixas do disco foram censuradas. E mesmo assim, o Milton Nascimento fez questão de lançar o disco com versões só instrumentais e com belíssimos arranjos do Vagner Tiso, que fazem deste disco um dos mais importantes de sua carreira.

A revista Roling Stone o considera entre os 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos. E eu o considero obrigatório para quem deseja conhecer a fundo a carreira deste excepcional mú- sico. Sua gravadora, a EMI/Odeon, ao saber da censura de 8 das 11 músicas, propôs ao Milton fazer um outro disco. Ele bateu o pé e assumiu os riscos. O disco só consolidou ainda mais sua carrei- ra, pois a censura, indiretamente, o ajudou a realizar o seu trabalho mais experimental, o que permitiu ao Milton explorar sua voz como um instrumento, e conquistar ainda mais prestígio no cenário internacional.

Minha lembrança mais forte daquela noite foi o silêncio e o respeito do público. Parecia que estávamos assistindo a um concerto de música clássica! Todos ali reunidos para ouvir um cantor de voz su- blime a nos mostrar que não havia censura capaz de impedir aquela apresentação. Hoje, repassando as centenas de shows ao vivo que vi, este tem um lugar especial em minha memória. Lembro-me vagamente dos rostos que meus olhos cruzaram, mas lembro perfeitamente da comoção coletiva ao final de cada música, traduzida em minutos de palmas, antes do teatro se recompor e voltar a estar em silêncio absoluto. Diria que foi uma noite de comunhão, regada à mais bela música. Todo este relato foi apenas uma introdução ao título deste texto.

Tive a honra de conhecer e produzir um dos mais geniais músicos brasileiros, o multiinstrumentista, cantor e compositor André Mehmari, e desde o lançamento de Lacrimae pela nossa gravadora em 2003, nos tornamos amigos. Daqueles amigos que quase não se vêem, mas que estão sempre presentes quando solicitados. Já falei em nossas resenhas de diversos discos gravados e produzidos por ele, em uma carreira cada vez mais consagrada, e utilizo na nossa metodologia algumas de suas gravações pela captação maravilhosa e seu bom gosto estético e musical.

No final de maio ele me mandou uma mensagem falando do seu mais novo disco: Na Esquina do Clube Com o Sol na Cabeça. Não precisava nem dizer que se tratava de um tributo à obra de Milton Nascimento, com este título, rs.

Disse que teria o maior interesse em ouvir e compartilhar com o nosso leitor. Porém, ouvir cada novo trabalho do Mehmari requer alguns cuidados, pois você sempre será pego emocionalmente. E sabendo desse risco, ao chegar o CD, deixei-o por alguns dias na prateleira de gravações à escutar (tenho esta prateleira tanto para discos como para livros, e as pendências ficam sempre no meu campo de visão quando sento na sala para trabalhar).

Uma noite depois de jantar, fui para a última tarefa do dia: realizar o ajuste de posição da caixa Dynaudio Evoke 50, para iniciar a bateria de testes. E resolvi escutar o CD. A introdução de Tudo que Você Podia Ser/Trem Azul me remeteu instantaneamente àquela noite no show Milagre dos Peixes, e a partir desta introdução sabia perfeitamente a catarse que faria daquele instante até ao final do disco.

Sons, cheiros, vultos, a iluminação do palco daquela noite, e a voz poderosa do Milton, me fizeram voltar no tempo e rever aquele garoto de 16 anos cheio de sonhos, que não tinha a menor ideia do que viria a ser sua vida nos restantes 44 anos. Dizer que é um disco especial para uma discografia tão excepcional como a do André Mehmari, parece redundante demais. Mas algo merece ser dito: é um disco que todos que amam a discografia de Milton Nascimento precisam ouvir.

E tenho certeza que, como eu, serão levados a abrir sua memória para uma visita a um passado que, ainda que adormecido, está bem vivo e presente no coração de todos que viveram intensamente aqueles anos loucos e dourados. O trio composto por André ao piano, Neymar Dias no contrabaixo (acústico e elétrico) e o Sérgio Reze na bateria e gongos melódicos, está tocando por osmose!

São raros os trios que conseguem esta sintonia tão fina e delicada. Tenho certeza que cada um de vocês que conhecem a obra do Milton, irá se identificar com alguma das 11 faixas (se não se identificarem com todas, como foi o meu caso).

E você, amigo leitor, que ainda é muito jovem e não viveu este período tão fértil e tão criativo da música brasileira, mas deseja entender o que seus pais ou irmãos mais velhos viveram, ouçam este disco e poderão ter um vislumbre da qualidade da música produzida no século passado.

Uma obra prima que o trio do André Mehmari nos presenteia, e que nos faz acreditar real- mente que os sonhos não envelhecem!

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